E a noite se fez dia

Ela colocou as mãos na parede do saguão, apoiando a cabeça. Chorou muito e disse: eu prefiro morrer do que ficar cega. A verdade era que ela já não via muito bem , mas já tinha se acostumado com o pouco que lhe restava, se adaptou.

A Médica tinha acabado de dar um diagnóstico negativo sobre seus olhos . Ela não via nada no teste de projeção de letras na tela .E era grave...

Após cirurgias de cataratas aparecia agora a tal a mácula que ela não entendia direito o que era.Não sabia que tinha que ser rápida para beneficiar de alguma possível melhora.
Estava tudo ficando pela metade, como que pedaços ausentes de um quebra-cabeça.Uma imagem rendada . A vida como uma malha intrincada de falhas.

Na semana anterior, maravilhada, havia contado que um passarinho de peito amarelo estava espreitando depois de dias, tentando entrar pela janela do quarto, quando finalmente entrou com raminhos no bico e pousou em cima das caixas de CDs da filha embaixo de seu altar onde ela tem a virgem em todas as suas manifestações.
Ele estava a procura de lugar para fazer um ninho e tinha escolhido o seu quarto. O que foi sentido como uma honra. Até ele se deparar com Apolo ,o cachorro, bem de frente, e foi-se, procurar outro abrigo mais seguro .

Essas simples visões era o que enchia sua vida de sentido no outono das estações e de sua vida também.

De noite ela acende sempre uma luz azul para dormir.Nunca gostou muito do escuro absoluto . Se a lua não está iluminando graciosamente sua janela ,as luzes coloridas dispostas em pedras translúcidas, o fazem causando um efeito de dar inveja a lua.

A filha decidiu ir contra o diagnóstico e procurar outro médico que lhe desse mais esperanças para os olhos de sua mãe, já tão fadigados de tantos tratamentos..É o momento em que os papéis se invertem e a filha se torna a mãe , mesmo que em busca de apenas esperanças.

Procurou especialistas e decidiu por uma família deles . Um clã especializados em olhos. Devem ter mais opcões de resultados...

E lá foram as duas. O que a filha não tinha contado era que ela tinha telefonado para um mestre espiritual que ela havia encontrado na Índia anos atrás e havia pedido para que ele orasse por ela .Orasse para que sua mãe nunca deixasse de ver , mesmo que um pouquinho que já era o que lhe restava.

O médico jovem e bem bonito era de todo delicadeza .
O coração era um rio onde corriam a fé , a expectativa misturadas na mesma água. A cada expiração era um mantra . A filha arregalava os olhos , vidrada como se isso pudesse ajudar a mãe reconhecer as letras.

-médico : -Vamos lá diz para mim o que você vê?

Ela: N H O P

E M N O

A R S H
x c z i
a b f t

Ela via tudo ! mais e melhor do que se podia esperar. Ela as lia rapidamente e sem pestanejar.

-Perfeito.O médico afirmou. O direito está perfeito . O esquerdo tem uma pequena lesão, se tiver ativa temos tratamento.

-:)

Elas deixaram o consultório em silêncio para que as palavras não quebrassem o encantamento .

Entraram num pequeno comércio onde tomaram um chocolate quente, lentamente...cada instante era leve e eterno.
Foram para casa e na sala de jantar elas dançaram, apenas dançaram.

- Mãe cê ta dançando errado! é assinm, olha!
-Eu não... eu dancei muito com seu pai. Eu sei dançar muito bem!!!!
-Cê ta dura tem que ter mais molejo!

E o riso de um segredo indizível desde então ecoa forte dentro de cada uma delas.